Sobre a Propagação da Fé (São José Marello - Cartas Pastorais)

SOBRE A PROPAGAÇÃO DA FÉ
1895

J O S É   M A R E L L O

Bispo de Ácqui



Ao Venerável Clero e Diletíssimo Povo da Cidade e Diocese


SAÚDE E BENÇÃO NO SENHOR


Venerandos Irmãos e Filhos em Cristo Diletíssimos,

O sumo Pontífice Leão XIII em uma sua recente encíclica aos Bispos do Orbe Católico faz novo apelo ao seu zelo para que com Ele queiram esforçar-se vivamente para favorecer as Missões Apostólicas. Recorda como em outra precedente, endereçado-lhes em 1880, exaltando com os maiores encômios a piedosa Obra da Propagação da Fé, se alegrava pelos consideráveis incrementos desta Obra benemérita, e acrescenta que necessidades muito mais prementes requerem agora dos fiéis um impulso de sempre maior generosidade. Portanto, tendo exposto as suas esperanças e os seus desígnios para apressar aquele tempo prometido por Deus, no qual não haverá senão um só Rebanho e um só Pastor, e manifestadas as solicitudes e os cuidados que ele dispensa nestes dias com particular afeto, em favor dos povos Orientais, pede aos Bispos a sua participação efetiva com estas palavras: “Fazei, portanto, ó Veneráveis Irmãos, todo esforço para que entre os fiéis confiados aos vossos cuidados a Associação de Propagação da Fé tenha o maior desenvolvimento possível. De fato, temos certeza que um número bem mais notável de fiéis dará de bom grado o próprio nome e fará ofertas mais generosas, se instruído por vós puder ver claramente o quão nobre é esta obra, quantas riquezas espirituais ela proporciona e quantas vantagens possa dela desfrutar, justamente nos dias de hoje, a causa cristã”.
Obsequiosos ao convite do Supremo Pastor, diante do qual também Nós somos ovelhas, queremos falar-vos, ó Venerandos Irmãos e Filhos Diletíssimos, da Piedosa Obra da propagação da Fé, e mesmo sabendo que ela, por causa das solicitudes dos nossos Venerados Predecessores e do zelo dos Párocos, já goza do favor dos nossos amantíssimos Diocesanos, acrescentaremos as nossas exortações a fim de que seja sempre mais favorecida por todos.
Ninguém ignora que N. S. Jesus Cristo quis continuar à sua obra de salvação do mundo através da pregação: "Ide, disse aos Apóstolos, evangelizai todos os povos: pregai o Evangelho à todos os homens: quem crer e for batizado, será salvo. “Buntes docete, omnes gentes: predicate Evangélium omni creaturae qui crediderit et baptizatus fuerit, salvus erit” [Matth. XVIII, i9 - Marc. XVI. i5]. Fiéis à esta ordem os Apóstolos e es seus primeiros Discípulos espelharam-se pela superfície da terra. Depois de terem pregado sobre Jesus Cristo em muitas províncias, Pedro e Paulo vieram trazer o Evangelho até Roma, como os outros Apóstolos apressaram-se em anunciá-lo em outras partes do mundo. Jesus Cristo enviando assim os seus Apóstolos a pregar não prometeu livrá-los das comuns exigências da vida, nem prover miraculosamente às suas necessidades e às do culto que iam estabelecer. Isto, que teria feito da vida dos Apóstolos um contínuo milagre, não estava nos planos da divina Providência. Cabia, ei vez, a quem já tinha participado de grande benefício e a quem estava para participar dele, ajudar os Apóstolos nas suas necessidades e nas obras de seu heróico ministério. E de fato, segundo o convite dos Apóstolos, os primeiros fiéis contribuíam para o bom sucesso do Apostolado e para o sustento das Igrejas nascentes; não só com as orações, mas ainda com generosas oblações. "Rezai por nós, escrevia São Paulo aos fiéis de Corinto, para que a palavra de Deus se difunda e frutifique como aconteceu entre vós... Deixai reservado nos dias de festa aquilo que for do agrado de cada um de vós, de modo que na minha ausência sejam feitas coletas e, ao meu retorno, possa mandá-las para Jerusalém". [I Conrinth. XVI. 1.2.3.]. Não nos esqueçamos, pois, ó Diletíssimos, que se desde os primeiros tempos, os nossos países receberam, por graça de Deus e sem mérito algum nosso, o benefício da fé, foi pelo ministério dos homens apostólicos e pela ajuda das orações e dos sacrifícios dos fiéis de outras terras; e portanto o exemplo daqueles homens generosos nos estimule a pagar, por nossa vez, da melhor maneira possível a dívida que cabe a nós, cooperando para estender a outros povos o benefício da Redenção, com o qual nós fomos misericordiosamente contemplados. Oh! quantos homens e quantos povos ainda estão sentados na sombra da morte: e quantas abominações, quanta desordem, e crimes quase inacreditáveis contaminam aquelas almas privadas do lume da fé, tanto mais necessitadas de compaixão e de ajuda, quanto menos demonstram conhecer sua situação!
Na Índia, como na China, no Japão, no Tibé, na Mongólia, naquelas imensas regiões vêem-se ainda elevados milhares de ídolos, e a seus pés se ajuntam turbas de fanáticos adoradores. Em meio à África o que encontram os nossos mais arrojados viajantes? Inumeráveis populações que tem um rio, uma árvore, uma pedra, um pássaro, uma cobra como objeto de um culto estúpido e bárbaro. E as tribos nômades, aquelas famílias errantes que vi vem da caça e da pesca, encerradas nas florestas da América, ou perdidas entre as vagas do grande Oceano, que sabem elas em grande parte de Deus, da alma, do seu passado, do seu porvir? Aqueles nossos irmãos jazem na mais espessa escuridão da ignorância e da barbárie, o que lhes acarreta uma longa série de males e de vícios horrendos que os deturpam: sua condição é, num certo sentido, pior que a dos animais; pois não há direito, não há vínculo de sorte alguma que seja respeitado entre eles: e daí também aquele estado de indizível aviltamento a que é reduzida a mulher, daí o infanticídio, daí os sacrifícios humanos, daí a escravidão.
Em quase todos os lugares fora do Cristianismo a mulher não goza de existência civil, nem de honra, nem de direito, nem de liberdade. Ela é escrava do marido, o qual se arroga o poder de abandoná-la, além de poder aprisioná-la, vendê-la e mesmo matá-la. Esta infeliz criatura, que entre nós Cristãos e a nobre companheira do homem, entre os povos pagãos é ainda hoje condenada a ser sepultada viva com o defunto marido, ou a ser queimada sobre o túmulo dele, a fim de mostrar que ela não deixe gozar de existência própria e que tudo termina para ela tendo o marido cessado de viver. Igualmente em quase todos os lugares, os pais se arrogam o direito de vida e da morte sobre os seus Filhos: e a cada dia milhares  de crianças, principalmente na China, perecem nas águas dos rios ou nos dentes de animais selvagens por neqüícia dos pais. Em outras regiões, como nas Ilhas da 0ceania,vítimas humanas são queimadas ou degoladas sobre altares de falsos deuses, e assim o sangue humano se mistura às práticas de culto mais abomináveis e revoltantes; aliás em algumas daquelas tribos a mesma mãe é condenada a imolar sobre o túmulo do esposo algum dos próprios filhos. De pois, a África é o campo principal onde se exerce a ignominiosa caça e o tráfico execrando do homem. Quantos pobres negros são vendidos lá como jumentos, e amiúde o preço menor que estes, a compradores cruéis que os sujeitam à mais abominável certidão, e os revendem por sua vez enriquecendo-se com o mais torpe dos mercados!
Nós, filhos primogênitos da sociedade cristã, nós felizes privilegiados, poderemos eximir-nos de contribuir para o retorno a Deus de tantos filhos, que têm esquecido o seu nome, o seu direito, os seus atributos, o seu culto, a sua lei divina? De colaborarmos para substituir com o seu santo império, aquele dos ídolos mais grosseiros e abomináveis? A recobrar a honra daqueles seres aviltados e degradados que apesar de tudo pertencem a Deus? A caridade católica nos oferece um meio maleável e eficaz na piedosa Obra da Propagação da Fé.
A qual tem exatamente por objetivo enviar novos Apóstolos a levar o conhecimento do Evangelho, àqueles que ainda o desconhecem, como também proporcionar aos católicos pobres e perseguidos, que vivem em meio aos idólatras e hereges, os meios para conservar, perpetuar entre eles os benefícios da fé. Da Santidade do Papa Gregório  é chamada: “Obra grande e santíssima que abre para todos os fiéis, de qualquer condição, a via e o modo fácil para se tornarem beneméritos das Missões Apostólicas e partícipes dos seus bens espirituais: obra a mais digna da admiração e do amor de todos os bons". E o Suma Pontífice Pio IX conhecendo "com suma consolação, o quanto redundasse a mesma, com ajuda de Deus, em copiosíssimos frutos de salvação a todo o mundo cristão", com decreto Urbi et Orbi mandava "que os Pastores de alma e especialmente os Bispos com palavras e escritos estimulas sem os fiéis e sempre mais os inflamassem a agregar-se a esta Obra para contribuir ao preclaríssimo fim da difusão da fé e para gozar das copiosas indulgências e das graças concedidas pela Santa Mãe Igreja".
Seria por demais extensa a descrição dos incrementos desta Obra, especialmente nos últimos anos. Vós podeis encontrá-la nos Anais da Obra, dos quais porém não podemos deixar de referir aqui um traço assaz consolador: “De quinze anos para cá, têm sido abertas mais de cem Missões, e foram erigidas mais de cento e sessenta Sedes em todos os pontos do globo: e de todas as nações européias surgem em grande número heróicos apóstolos, felizes de poder dar ao Evangelho a sua juventude,  a sua abnegação, a sua vida”.
Pois bem, esta Obra, que atende tão maravilhosamente os desígnios de Deus, e que é tão inculcada pelos Sumos Pontífices, não pretende já dos seus associados, que sigam os passos dos Missionários, que como eles façam o árduo sacrifício de seus legítimos interesses e dos mais tenros afetos, que afronte os perigos do mar, a inclemência dos climas a ferocidade dos animais. a perseguição, os suplícios, a morte: não exige longas orações, austeros jejuns, graves penitências. Ela não pede ao devotos inscritos senão uma breve oração a cada dia, um Pater e um Ave com uma piedosa invocação ao glorioso, apóstolo das Índias, São Francisco Xavier, e permite também aplicar para tal fim, de uma vez para sempre, aquela oração que todo cristão já está acostumado a elevar de manhã e de  tarde, a Deus que o criou e conserva. Não pede a cada semana senão a oferta daquela tênue esmola que mesmo o pobre, se for piedoso, não recusa a quem é mais pobre do que ele.
Esta grande obra de caridade, da qual podemos tomar parte tão facilmente com a nossa oração e com nossas esmolas, e também fecunda de grande bem para nós, pois o nosso contributo nos da o direito de participar de todos os frutos, de todos os méritos, de todas as glórias da Obra mesmo nos seus apóstolos, nos seus Confessores, nos seus mártires.
Sobretudo, cooperando com Deus para comunicar a luz da fé aqueles infelizes que ainda estão sepultados nas trevas do erro, nós haveremos de merecer que esta luz divina resplandeça sempre mais viva em nossas almas. As sim pensam também os nossos Confrades no Episcopado que de vários modos exprimem esta comum convicção. ".A pequena esmola que consagrais à 0bra da Propagação da Fé, escreve o Bispo de Valência aos seus Diocesanos obterá para vós abundantes graças e a mais preciosa de todas, a conservação da fé na vossa pátria". "à conservação da fé entre nós, diz um outro Bispo, será o retorno e o prêmio do esforço que fizermos para propagá-la alhures." ; e, Nós queremos acrescentar, não somente a conversão, mas o crescimento da fé e dos seus frutos; pois que Deus; como nos assegura o Apóstolo São Paulo "há de multiplicar as sementes que semearmos e há de acrescer os frutos da mesma: multiplicabit semen vestrum et augebit incrementa frugum. iustitiae vestrae" [ÌÌ Corinth. IX. i0.]. Bonito pensamento, o de um Bispo Missionário: "a misericórdia sempre retorna ao lugar de onde partiu". E assim ensina Santo Tomás com estas palavras: "nada impele tanto Deus a conceder-nos a sua misericórdia, quanto a mesma misericórdia por nós usada". O próprio Jesus Cristo proclama bem-aventurados os misericordiosos porque alcançarão misericórdia.
Agora, quem colaborar com a propagação da fé, praticando ao mesmo tempo muitas obras de misericórdia, ao socorrer tantos infelizes nas suas necessidades espirituais e temporais, não terá toda a razão de esperar de Deus uma grande misericórdia? E não só uma misericórdia grande, mas a suprema das misericórdias, o prêmio da eterna salvação, já que diz um oráculo do Espírito Santo: "quem fizer com que um pecador se converta, salvará a própria alma da morte. e cobrirá a multidão dos próprios pecados: qui coriverti fecerit peccatorem ab errore viae suae, salvahit animam eius a morte, et operiet multitudinem peccatorum" (Iacob. V. 20.). Donde conclui Santo Agostinho: "salvaste uma alma? então salvaste também a tua: animam salvasti, animam tuam praedestinasti". Por isso a obra com a qual contribuímos para salvar um grande número de almas é um grande meio de assegurar-nos do misericordioso Deus a eterna glória do céu.
E se alguém, para entibiar o vosso zelo com relação à Obra da Propagação da Fé, afirmasse que os anos magros, as crises da indústria e do comércio acabaram por exaurir a fonte da caridade, deveríamos responder com as palavras do Santo Padre Leão XII na já citada encíclica: "Efetivamente, o tempo é tal que muitos estão reduzidos à miséria, mas ninguém desanime por causa disso, pois que a ninguém deve ser pesada a oblação da pequena moeda que para esta finalidade se pede, para que muitas reunidas em uma, possam constituir um auxilio valioso". Ademais, quem desconhece o Indulto apostólico pelo qual, aqueles a quem a tenuíssima regular oblação semanal resultasse superior às próprias forças, podem em tal caso oferecer também menos, gozando as sim mesmo dos inteiros privilégios? Se apesar de tudo, por uma providência mal compreendida, e por medo que a esmola o empobreça, alguém relutasse quanto a favorecer a Obra da Propagação da Fé, pense no oráculo do Espírito Santo: "quem dá ao pobre, não cairá na miséria: qui dat pauperi, non indigebit" [Prov. XXVIII.27] e considere, como acrescenta o Santo Padre, "que a sua liberalidade não lhe trará dano, mas sim lucro; porque quem dá ao indigente empresta a Deus; e por isso dar esmolas foi chamado o mais lucrativo de todos os negócios".
Nós esperamos, então, que vós, ó Diletíssimos, competireis com generoso ardor para favorecer uma obra tão piedosa e tão santa: e conforta-nos sumamente o pensamento que o vosso zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas será um doce e seguro penhor da vossa predestinação à beatitude celeste.
Enfim, nós vos exortamos, V.I. e F.D. a redobrar as vossas orações pela exaltação da Santa Mãe Igreja, e pela prosperidade fio Sumo Pontífice Leão XIII, que não obstante a sua idade avançada, esforça-se ainda com a mais incansável solicitude pela propagação do Reino de Jesus Cristo entre o povos; rezai também pelo nosso Augusto Soberano, pela Família Real, e pelos poderes do Estado; e não queirais diante de Deus esquecer-vos de Nós, que prometemos como é nosso dever, retribui-vos igualmente, e com toda efusão do coração vos bendizemos em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo.

Acqui, 08 de fevereiro de 1895,

+ J O S É  Bispo

Séc. Pedro Peloso, Secr.