Sobre o Respeito Humano (São José Marello - Cartas Pastorais)

SOBRE O RESPEITO HUMANO
1993

J O S É      M A R E L L O

Bispo de Acqui


Ao Venerável Clero e Diletíssimo Povo Cidade e Diocese


SAÚDE E BENÇÀO NO SENHOR


Venerandos Irmãos e Filhos em Cristo Diletíssimos,

A vida do homem sobre a terra, como se lê nos livros Santos, é uma contínua batalha. Quantos assaltos do demônio a repelir, quantas más inclinações do nosso coração a combater, quantas seduções de um mundo perverso e perversor a vencer! Justo porque o mundo com os seus malignos ensinamentos e exemplos se esforça para arrastar-nos àquele mal a que somo já, infelizmente, inclinados, o Divino Mestre em seu Evangelho nos recomenda vigiar e orar para não sucumbirmos à tentação e os Santos Apóstolos Pedro e Paulo nos repetem a mesma recomendação, um dizendo para resistirmos ao inimigo da nossa saúde em nos mantendo fortes na fé, e outro (dizendo) para caminharmos com prudência e precaução porque os dias que passam são maus (I Petr. V. 8.9. V. 16.17).
As razões pelas quais os dois Apóstolos nos recomendam que estejamos fortes na fé e que usemos de prudência na nossa conduta são de todos os tempos e de todos os lugares, mas convêm de especial modo àqueles em que vivemos. Quem, de fato, não reconhece que nos nossos dias os inimigos de Jesus Cristo vão crescendo em número e em atrevimento, movendo uma guerra sempre mais encarniçada e pertinaz assim à fé como à moral cristã? Mas quando a guerra é impelida a tal excesso, e os nossos inimigos multiplicam os seus assaltos contra a religião para abatê-la, se fosse possível, urge mormente para os fiéis o dever de tomar corajosamente a sua defesa; e render-lhes um testemunho mais solene com as palavras e com as obras, devendo todos recordar o ensinamento de Jesus Cristo, isto é, que não basta crer interiormente na sua doutrina, mas que é preciso professá-la exteriormente, e não se envergonhar dele diante dos homens para não sermos por ele renegados diante do seu Pai Celestial.
Isto, V.I e F.D., é preceito de Jesus Cristo; nisto nos é indicada a condição sem a qual não se pode conseguir a eterna saúde; nisto é ratificada a condenação mais expressa e formal daquilo a que se chama respeito humano: veneno letal, que o mundo faz penetrar no ânimo de tantos fiéis, cobrindo de desprezo o ensinamento do Evangelho as práticas de piedade, os deveres cristãos, ridicularizando aqueles que zelam pela sua observância, e bem amiúde obtendo dois resultados que são o verdadeiro objetivo dos seus desejos: manter longe da religião aqueles Que já a têm abandonado, e dela afastar pouco a pouco as pessoas débeis e vacilantes, às quais falta ânimo de mostrar-se abertamente cristãs em vista às suas críticas e aos seus escárnios.
E quem é que tendo-se pelo santo Batismo tornado discípulo de Jesus Cristo e tantas vezes renovado a promessa de permanecer-lhe fiel custasse o esforço e sacrifício que custasse, quem se deixará Dois colher nesta insídia, dobrará servilmente o pescoço a um jugo tão ignominioso? Mercê de Deus, a Nós é lícito afirmar, para glória desta nossa dileta Diocese, que são ainda em número consolante aqueles que se conservam fortes na fé e firmes na observância dos deveres religiosos: como também deixar não podemos de deplorar que mesmo em meio às nossas populações sé vá insinuando a contagiosa doença do respeito humano. Infelizmente, multiplicam-se aqueles cristãos que, embora sem renegar a fé conduzem uma vida que discorda em muitos pontos dos seus ensinamentos e das suas leis, crente, por isso, no coração e descrente nas obras: cristãos que, se a religião for considerada honrosa e honroso quem a professa, acharão Que é uma glória, uma vantagem praticar os seus deveres; mas tão logo não tenha ela mais a homenagem e a proteção dos grandes e dos potentes do século, nem aproveite do interesse temporal o declarar-se-lhe amigo. voltam-lhe as costas sem vacilar e se envergonham de antes terem sido seus sequazes fiéis. Terão eles, esses cristãos, mudado com o mudar dos tempos a sua íntima convicção e cessado por isso de crer nas verdades da fé? Comumente, não. No seu interior eles pensam e sentem com respeito às suas obrigações de consciência como anteriormente; mas como é necessário um pouco de coragem para demonstrar-se abertamente cristãos, e cristãos praticantes, acham mais conveniente mentir a si mesmo e mostrar-se piores do que são.
Agora perguntamos a estes infelizes escravos do respeito humano: como é que o mundo consegue um poder tão grande sobre vós? Como pode ele conduzir-vos ao ponto que, para não perder o seu favor, vós lhe sacrifiqueis a vossa fé? É a sua força que conduz a isto ou (é) a vossa fraqueza? Refletis sobre o que fazeis? Então deve-se temer mais as censuras, as zombarias, os escárnios do mundo malévolo do que as leis e os castiços de Deus onipotente?
Cristãos débeis e incertos, que tremeis diante de uma palavra zombeteira, a um sorriso de escárnio de um libertino, o que então vos teríeis tornado naqueles séculos em que era necessário selar com o sangue a profissão de fé? A vossa pusilanimidade, dói por demais dizê-lo, teria feito de vós uns apóstatas. Mas e a vossa conduta atual, predominada pelo respeito humano, não vos conduz também ela a tal fim, isto é, à apostasia? Hoje corais desta ou daquela prática de piedade, de uma ou outra lei que vos impõe Deus ou a Igreja; e amanhã? Amanhã talvez vos envergonhareis até mesmo de crer, dirigindo-vos assim, ou antes, precipitando-vos no fundo do abismo. São Paulo protesta, a altamente não envergonhar se nem do Evangelho, neT1 da Cruz de Jesus Cristo: os cristãos que servem ao respeito humano, deixam para trás o Evangelho e a Cruz para não sofrer um motejo dos malvados. Que covardia!
E cresce ainda mais a sua culpa se considera que eles a cometem mesmo com propósito deliberado: em outros casos, pode o homem transviar-se e cair em falta levado ou induzido ao mal pelo juízo errôneo apesar de culpado; sem aquele engano talvez não tivesse pecado: mas aqui, que desculpa pode aduzir em seu favor quem se torna réu por causa do respeito humano? Aqui, comete-se o mal, sabendo o que se faz, e que assim fazendo ofende-se a Deus: e isto agrava a culpa. De fato, dizei-o vos que talvez em dias de abstinência, por causa do exemplo, vos permitistes tomar alimentos então vedados: não refletistes, naquelas ocasiões, sobre a lei que os proibia? Certamente sim, já que não podíeis ignorá-la; e no entanto, postos entre a lei è o respeito humano, como raciocinastes? Vós dissestes: se eu observo a lei, mantenho-me fiel a Deus, e por tanto, merecedor das suas graças e bênçãos: nas os circunstantes o que pensarão de mim, que irão falar de mim com os seus pares? Que eu sou ainda vítima dos prejuízos, que ainda não acabei com as hesitações e os escrúpulos: é demais; Deus que se ofenda: é melhor ter a Ele como inimigo do que contrariar o mundo. - Certamente não vos haveis expresso com tão horrenda linguagem: mas o fato foi assim: ora, ele é mais eloqüente do que as próprias palavras. - Sim, sem dúvida, os escravos do respeito humano, preferem as considerações humanas às (considerações) divinas, preferem abertamente dar ouvido à voz do mundo, antes que à de Deus: não corariam, aliás, se gloriariam do Evangelho se fosse aprovado pelo mundo: mas o mundo insurge contra, e eles tremem diante dele, não cuidam dos seus deveres e fazem-se rebeldes à lei divina.
Logo, os escravos do respeito humano querem estar de bem com o mundo, e isto em todo caso e a qualquer custo: ora, o que tem o mundo para oferecer a eles em troca da obediência cega que eles prestam aos seus iníquos ditames? Abastança, honras, prazeres? Mas o homem, peregrino no aquém e hóspede por poucos anos da casa onde mora, amiúde é desiludido nos seus mais róseos desígnios, nos seus mais lindos sonhos de felicidade: e o exemplo de todos os tempos assegura que o mundo nunca soube e nunca pode tornar contente um só de seus sequazes: e de resto também, qual dos mundanos de hoje em dia, interrogado responderia que é plenamente contente com a sua vida e verdadeiramente feliz? Os prazeres nem sempre vêm acompanhados com a sanidade do corpo, e nunca, se forem ilícitos, com a paz do coração; as riquezas não se acumulam, nem se conservam sem muitos cuidados e graves inquietudes, e quem é seu escravo não as perde sem um amargo desgosto. Para um objeto desejado que alcançamos, mil outros nos escapam, e se pudéssemos consegui-los todos, nem mesmo então, nos seria dado sentir-nos felizes. No-lo ensina Salomão com sua própria existência. Ele, o mais sábio, o mais potente e felizardo de todos os monarcas confessa que, após ter provado de tudo o que o coração do homem pode provar no aquém, achou-se constrangido a exclamar: vaidade das vaidades; todas as coisas são vaidade e aflição de espírito: vanitas vanitatum et omnia vanitas et afflictio spiritus (Ecl. 1.2.). E como gozar de verdade com ânimo tranqüilo as riquezas, os prazeres e as honras da vida pensando que de todas estas coisas terrenas cada um de nós estará logo privado, despojado inteiramente pela morte?
E a morte que pode tardar, mas não falhar, como encontrará os míseros escravos do respeito humano? Encontrá-los-á de ânimo bem disposto para apresentar-se ao juízo? Sim, se devessem prestar contas da própria conduta não a Jesus, seu Deus, mas ao mundo, ao qual servem: o mundo, porém, não julga, mas será julgado; e como contrário a Deus, pobre e escandaloso em todas as suas máximas e as suas vias, será condenado: devendo o mundo acabar reprovado, não poderão ser salvos os seus escravos e adoradores. Eis o vosso fim, ó míseros escravos das humanas deferências: vós temeis o mundo e não a Deus! Pois bem, aquele Deus que agora desprezais para agradar ao mundo, Ele e não o mundo, vos examinará e encontrando-os, como sois, mundanos e não cristãos, irá afastar-vos d'Ele, não nos reconhecerá como seus, vos recusará o prêmio, vos declarará réus do castigo eterno. Não pode escapar de tal destino, quem continua a servir o mundo mesmo a custo de ofender a Deus: mas como não tremer pensando poder no último dia estar da parte dos malditos? E no entanto é fora de dúvidas que, como se planta, assim se colhe: (Galatas 6,8)
Portanto, é um erro enorme tomar o respeito humano como regra da própria conduta: o homem, que é tão ciumento da sua liberdade, torna-se, no entanto, escravo das vontades de outrem, aliás, dos caprichos e péssimos instintos alheios: sofre-se não pouco para aceitar um bom conselho quando se trata do bem, e depois segue-se todos os passos dos malvados, envilecendo, degradando a si mesmos e rebelando-se a Deus. Como se pode explicar, de um lado tanta pretensão de independência e do outro, tanto servilismo e abjeção? - Explica-se logo se pensarmos que em nós a fé é pouco viva e pouco praticada: com a fé um pouco mais viva e um pouco mais prática entenderíamos facilmente que nós devemos em todos os casos, dar preferência à alma e à eternidade, e não ao sorriso das criaturas e aos seus falazes atrativos e promessas: refletiríamos que, como é Deus e não o mundo que nos deu a vida e no-la conserva, que nos proporcionou a sua graça, que nos prometeu e nos dará a sua glória, assim é sempre a Deus que devemos servir, e aos outros só naquilo que não se opõe a Deus: em tudo o mais não, se nos quisermos salvar.
Levantemos, então, o olhar para o alto, ó Diletíssimos, e aspiremos aos bens que Deus tem preparado para aqueles que o servem e amam. Enderecemos os nossos desejos àqueles celestes tesouros que não se perdem, àquela glória que ninguém nos pode arrebatar, àquela felicidade que dura eternamente. 0 temor do mundo e as esperanças enganadoras que ele faz conceber não nos afastem da observância daquela lei segundo a qual unicamente, seremos julgados com sentença inapelável. Temamos somente a Deus e só n'Ele coloquemos a nossa glória,
e gozaremos já aqui na terra aquela paz que o mundo não nos pode dar. Longe de nós o jugo vituperioso do respeito humano, que torna escravo do demônio a quem é chamado à liberdade dos filhos de Deus: e se obedecer do Evangelho pode tornar-se, às vezes, de peso, olhemos ao nosso redor, quantos fiéis cristãos dão testemunho das palavras de Jesus Cristo. Que disse ser leve o seu peso e suave o seu jugo: iugum meum suave est onus meum leve. (Math. XI.30); e confortemo-nos no pensamento de que a divina graça vem, também para nós, aliviá-lo e abrandar todo sacrifício que nós devemos encontrar na via que conduz ao céu. - Portanto, ó V.I, e F.D., reavivemos a nossa fé e tornemo-la fecunda de obras boas. Façamos dela a regra única e fixa da nossa conduta, também na presença dos homens, a fim de que um dia, diante do Juiz Divino, ela seja para nós não ocasião de condenação, mas sim título glorioso para o conseguimento da saúde eterna. E como para manter-nos sólidos no bom propósito é indispensável o auxílio da graça divina, nós o impetramos com a oração humilde, confiante, perseverante, que tudo obtém do céu segundo o que disse N.S. Jesus Cristo: pedi e vos será dado: buscai e encontrareis: batei e abri-se-vos-á: petite et dabitur vobis: quaerite et invenietis: pulsate et aperietur vobis (Math. VII.7).

Em união com os nossos irmãos da grande família cristã oremos pelo Sumo Pontífice gloriosamente reinante Leão XIII: agradeçamos à divina bondade por ter dado a conservado à sua Igreja em tempos tão procelosos, um Papa de tanta sabedoria e operosidade, e supliquemo-lha que queria conservá-lo ainda por muitos anos, para o bem dos seus diletos filhos e do mundo: e que, entrementes. faça tornar a ele de conforto e alívio, entre as graves solicitudes do seu ministério apostólico, aquela fidelidade e aquele amor de que por toda parte dá-se-lhe prova na fausta ocasião do seu Jubileu Episcopal.

Ademais, não nos esqueçamos, ó Diletíssimos, de rezar também pelo nosso Augusto Soberano, pela Família Real e pelos Poderes do Estado. Rezai, enfim, Vós todos, também por Nós que não cessamos de